
Em latim, é possível fazer saudações com três verbos diferentes:
● avere: ao se encontrar, p.ex., Ave, Caesar, morituri te salutant (“Ave, César, os que morrerão te saúdam”); sobrevive na oração “Ave, Maria”;
● salvere: para boas vindas, p.ex.: Salve, Regina (“Salve, Rainha”), início da oração;
● valere: para despedidas e encerramento de cartas, p.ex.: Valete, Frates (“Adeus, irmãos”), Fernando Pessoa, em Mensagem.
Interessa-nos aqui o verbo salvere, conjugado na 2ª pessoa do singular (salve, Fulanus!) e do plural (salvete, Fulanus et Sicranus!) do presente do imperativo. Trata-se de verbo defectivo, que não se conjuga na 1ª pessoa (saudar-se a si mesmo), nem na 3ª (saudar quem não é o interlocutor).
Na tradução para o português, a 2ª pessoa do singular é pacífica: salve, Fulanus = “salve, Fulano”. Já a 2ª pessoa do plural, o Volp, Laudelino Freire, Maximiano Augusto Gonçalves e o Michaelis, traduzem salvete por “salvete”: salvete, frates = “salvete, irmãos”. Por ser antiquado, não consta em vários outros dicionários.
Só que, em português, não se costuma flexionar em número as interjeições. Vejam que do “olá” ao “adeus”, do “oi” ao “tchau”, não há alteração conforme o número de pessoas a que se dirige – salvo em tom de chacota, como “tchauses”. “Bons dias”, ¹ “boas tardes” e “boas noites”, além de não serem interjeições (exceto para Cegalla), são pluralizados em Portugal por costume (Bergo) e por purismo (Cardoso Jr. e Gonçalves), não por se dirigirem a mais de uma pessoa (Porto).
Seja na condição de imperativo no latim, seja na de interjeição no português, o “salve” é freqüentemente seguido do nome saudado. Como, nas duas línguas, este nome cumpre o papel de vocativo, ambos os termos devem ser separados por vírgula: salve, Fulano!
Considerando isso, o Hino à Bandeira está correto:
“Salve, lindo pendão da esperança,
Salve, símbolo augusto da paz.”
Notem que não é um pedido para que alguém “salve o lindo pendão”, nem que “salve o símbolo augusto”. O hino se dirige à bandeira (2ª pessoa do singular), como fica claro na seqüência: “
tua nobre presença” etc. Olavo Bilac não erraria isso.
Também correto o Hino Nacional, no verso:
“Ó pátria amada, idolatrada, salve, salve!”
Não há vírgula entre “ó” e “pátria” porque essa interjeição de interpelação faz parte do vocativo – já a interjeição de admiração “oh” seria separada por vírgula ou ponto de exclamação. Escrito com o significado de vocativo, esse “ó” costuma soar como um “oh”, de desespero. E o verso de saudação, como um apelo à salvação.
Vejamos agora a tradução do início da oração Salve-Rainha:
“Salve, Regina, Mater misericordiae; vita, dulcedo, et spes nostra, salve!”
“Salve, Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve!”
Observem que não é “Salve a Rainha”, porque a oração não pede a outrem (Deus?) para salvar Maria (3ª pessoa). Ela é uma saudação à Virgem Santíssima, mas há aí uma curiosidade: no restante da oração, enquanto em latim ela é tratada como 2ª pessoa do singular (ad
te clamamus), em português o é na 2ª do plural (“a
vós bradamos”) etc. Aliás, a mesma situação ocorre na oração Ave-Maria:
“Ave, Maria, gratia plena, Dominus
tecum!” (2ª pessoa do singular)
“Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é
convosco!” (2ª pessoa do plural)
Se, em ambas as orações, Maria é tratada na 2ª pessoa do plural, por uma questão de concordância, as traduções não teriam que ser “Salvete, Rainha” e “Avete, Maria”, respectivamente?
Bem, a 2ª pessoa do plural só é utilizada aí como forma de tratamento, em demonstração de respeito a pessoas muito importantes, Deus (Cunha e Cintra) e Nossa Senhora. E, nesses casos, o verbo é conjugado na 2ª do plural, mas adjetivos e particípios são mantidos no singular (Gonçalves) – p.ex., “bendita [singular] sois [plural] vós [plural]”. Como, em português, não é normal a flexão de número nas interjeições, é inexigível a concordância (daí o provável motivo de terem caído em desuso as formas plurais avete, salvete e valete).
Pois bem, e o que isso tudo tem a ver com o futebol? O gramático – e palmeirense – Luiz Antonio Sacconi chama a atenção para o uso equivocado do “salve” nos hinos do futebol brasileiro. Mesmo desconsiderando eventuais erros de virgulação (que podem ser um problema de transcrição), uma rápida pesquisa no hinário de Humberto Lopes revela numerosos exemplos em que a vírgula é substituída pelo artigo definido (o que afasta a hipótese de erro de digitação):
● “Salve a celeste, esquadra azul do gigante forte” – União Recreativa dos Trabalhadores – URT (MG)
● “Salve a chama sempre viva (...), salve o afã beneditino” – EC São Bento (SP)
● “Salve o Avenida, clube do povo, (...) salve o Periquitão” – EC Avenida (RS)
● “Salve o Brasiliense” – Brasiliense FC (DF)
● “Salve o Comercial, salve o nosso torcedor, salve o brado da torcida” – Comercial EC (MS)
● “Salve o Corinthians, o campeão dos campeões” – SC Corinthians Paulista (SP)
● “Salve o Criciúma no esporte nacional” – Criciúma EC (SC)
● “Salve o fruto da terra” – Nova Iguaçu FC (RJ)
● “Salve o glorioso alviverde” – Sete de Setembro EC de Garanhuns (PE)
● “Salve o mais querido” – ABC FC (RN)
● “Salve o Pelotas, salve o glorioso” – EC Pelotas (RS)
● “Salve o querido pavilhão” – Fluminense FC (RJ)
● “Salve o tricolor de aço” – Fortaleza EC (CE)
● “Salve o tricolor paulista” – São Paulo FC (SP)
● “Salve o Vila Nova, tricampeão” – Vila Nova FC (GO)
● “Salve, salve a Portuguesa, com certeza” – AA Portuguesa (RJ)
● “Salve, salve a veterana, clube forte e tão bacana” – AA Caldense (MG)
● “Salve, salve o meu Leão querido, salve o Mirassol” – Mirassol FC (SP)
● “Salve, salve o Tigrão” – Marília AC (SP)
● “Salve, salve o Valeriodoce” – Valeriodoce EC (MG)
Em alguns hinos, isso não ocorre, mas a letra não se dirige ao clube em 2ª pessoa, referindo-se a ele em 3ª:
● “É a glória do Brasil (...), salve, ó campeão da Princesa do Sertão” – Uberaba SC (MG)
● “Salve, salve, FAC, é o time dos maiorais” – Ferroviário AC (CE)
O hino do América FC de Teófilo Otoni (MG) apresenta acerto e erro: “Salve, América [certo], salve o nosso nome [errado]”.
Mas também há exemplos de uso correto (2ª pessoa, com vírgula, sem artigo):
● “Salve, Comercial, Leão do Norte, tens presença imortal” – Comercial FC de Ribeirão Preto (SP)
● “Salve, corte aguerrida, afirmação do valor, as glórias trazem contidas no teu pendão bicolor” – SC Penedense (AL)
● “Salve, Horizonte, time de fama (...), tu és o galo horizontino” – Horizonte FC (CE)
● “Salve, salve, ó grandioso Esporte Clube Santo André, (...) és lutador, grande guerreiro” – EC Santo André (SP)
● “Salve, salve, União Barbarense, (...) tens um nome gravado na história” – União Barbarense FC (SP)
Bem que os senhores letristas e os clubes poderiam tentar corrigir. Caso contrário, em vez de saudação, seus torcedores continuarão cantando apelos de salvação... algo que não há nem no hino do glorioso Íbis SC (PE).