
Quando eu soube do lançamento desse livro coordenado por Rodolfo Kussarev Jr., pelas poucas informações e pelas raras fotos divulgadas de suas páginas internas, pensei: será um resumo atualizado da gigante obra de Rubens Ribeiro, com melhor acabamento gráfico.
Só que não.
Para explicar melhor – e permitir uma melhor percepção da obra –, vou começar falando da principal bibliografia existente sobre o campeonato paulista. Em ordem mais ou menos cronológica de publicação:
1) “A história do campeonato paulista”, de Valmir Storti e André Fontenelle. O livro dedica duas páginas para cada edição da primeira divisão, com: foto, texto de apresentação, resumo do regulamento, classificação, súmula da partida decisiva, relação dos principais artilheiros, perfil de um jogador e algumas curiosidades.
2) “O caminho da bola”, de Rubens Ribeiro. Três volumes contam a história da primeira divisão até 2007. Para cada ano, um texto de apresentação, algumas informações a mais, curiosidades, mas o forte mesmo é a publicação das súmulas de todas as partidas, seguidas de classificação e resumo estatístico. Para mim, o melhor volume é o primeiro, mais enriquecido por informações extra, inspiradas nas de Thomaz Mazzoni em “História do futebol no Brasil”.
3) “Almanaque do futebol paulista”, de José Jorge Farah Neto e Kussarev. Teve quatro edições, relativas aos anos 2000 a 2004. As de 2000 e 2001 trazem uma relação de todos os clubes que disputaram todas as divisões do campeonato, organizados por cidade, em ordem alfabética. Sobre cada um deles: escudo, foto colorida, breve resumo histórico e estatístico (semelhante à “Lancepédia” e às edições Placar 500 times do Brasil). A de 2001 é enriquecida por uma relação, com escudos e dados resumidos, dos times amadores que disputaram as divisões inferiores da capital até 1940. A de 2002 apresenta os clubes não mais pela cidade mas por divisão, relegando a uma lista sumaríssima os que não participam mais do campeonato – um formato de transição para o “Guia oficial”.
4) “Guia oficial” do campeonato paulista, publicado de 2005 a 2015. As primeiras edições contaram com a participação de Kussarev. Além da parte mais circunstancial que se espera de um anuário, algumas edições trouxeram dados históricos, p.ex., sobre: bandeira e escudo (1ª divisão 2006), história do futebol na cidade (2ª divisão 2006), mascote e apelido (1ª e 2ª divisões de 2007), cronologia do campeonato e dos clubes (1ª divisão de 2009) e história dos clubes (2ª divisão de 2009).
5) “Os esquecidos: arquivos do futebol paulista”, de Kussarev. Um resgate da história das divisões inferiores até 1947. São competições cujas informações são difíceis de encontrar. Sobre a maioria delas, está tudo lá: relações de partidas, classificação, escudos dos times, curiosidades etc. Além disso, destaco que é um livro muito bem ilustrado e com o melhor acabamento gráfico de todos esses que estamos relacionando aqui.
6) “A rota das bandeiras: a história do futebol no interior de São Paulo”, de Celso Franco de Oliveira Filho. Ano a ano, apresenta um breve histórico do que aconteceu nos campeonatos do interior e, depois, nas divisões inferiores do estadual.
7) “História da 2ª divisão no futebol paulista”, de Julio Bovi Diogo e Rodolfo Pedro Stella Jr. É a publicação das súmulas de todas as partidas disputadas na segundona, de 1947 a 2021.
(Não considero aqui a pioneira “História do foot-ball em São Paulo”, de Antônio Figueiredo, para não cometer o anacronismo de comparar uma obra de 2021 com outra de 1918. Também não considero o “Anuário do futebol paulista”, de Rodolfo Rodrigues e Robson Morelli, porque se limita às informações dos anos de 2012 e 2013.)
Diante dessa bibliografia, o que dizer desse que tem sido chamado, entre os pesquisadores e jornalistas do ramo, de “livrão da FPF” (merecedor, portanto, de um resenhão)?
Ele:
a) Conta a história do futebol paulista sob a perspectiva do campeonato, não dos clubes. No final do livro, até traz dados sumários (em formato que lembra o “Almanaque”) de todos os clubes que já participaram de todas as divisões do campeonato, organizados por cidade. Mas, nesse aspecto clubístico, é inferior ao “Almanaque” e a algumas edições do “Guia”, cujo foco está nos clubes.
b) Trata de todas as divisões, sendo nesse ponto superior a “A história do campeonato paulista” e “O caminho da bola”, que se limitam à 1ª divisão, e também a “A rota das bandeiras” e “História da 2ª divisão no futebol paulista”, que tratam das inferiores.
c) Não traz todas as partidas, apenas as da campanha do campeão. Nesse aspecto, é superior a “A história do campeonato paulista”, “Guia” da 1ª divisão de 2009 e “A rota das bandeiras”, que relacionam poucas ou nem uma. Mas é inferior a “O caminho da bola”, “Os esquecidos” e “História da 2ª divisão no futebol paulista”, que apresentam todas as da divisão a que se dedicam.
d) Traz apenas a relação dos resultados. Nesse ponto, se parece com “Os esquecidos” mas é inferior a “O caminho da bola” e “História da 2ª divisão no futebol paulista”, que apresentam as súmulas completas da divisão a que se dedicam.
e) É bem ilustrado, colorido e com um acabamento gráfico impecável, inferior apenas a “Os esquecidos”.
f) É o segundo mais atualizado desses livros (até 2020), ficando atrás apenas da “História da 2ª divisão no futebol paulista” (até 2021).

Comparando, então, com cada uma dessas obras, podemos dizer que:
1. Em relação às informações sobre os clubes, é ligeiramente inferior aos “Almanaques” e a algumas edições do “Guia” – até porque não é esse seu objetivo principal.
2. Em relação à cronologia do campeonato:
2.1. É superior a “A história do campeonato paulista” e “Guia” da 1ª divisão de 2009 em todos os aspectos: trata de todas as divisões, traz os resultados das partidas da campanha do campeão, tem melhor acabamento e é mais atualizado.
2.2. Quanto a “O caminho da bola”, tem as seguintes vantagens: trata de todas as divisões, com classificações totais e parciais (inclusive dos Paulistinhas dos anos 70 e alguns torneios seletivos), tem melhor acabamento e é mais atualizado. E duas desvantagens: não traz as súmulas de todas as partidas da 1ª divisão nem dado algum do Torneio Início.
2.3. Quanto a “A rota das bandeiras”, tem as seguintes vantagens: trata de todas as divisões, traz as campanhas dos campeões, tem melhor acabamento e é mais atualizado. E uma desvantagem: seus textos de apresentação de cada ano não dão o mesmo destaque ao que aconteceu nas divisões inferiores.
2.4. Quanto a “História da 2ª divisão no futebol paulista”, tem as seguintes vantagens: trata de todas as divisões, inclusive de anos anteriores a 1947, e tem melhor acabamento. E uma desvantagem: não traz as súmulas de todas as partidas da 2ª divisão.
Em síntese, 90% do “livrão” é uma versão ampliada de “Os esquecidos” (com foco nos campeonatos) e 10% é uma versão reduzida dos “Almanaques” (com foco nos clubes). Em relação a “Os esquecidos”, o “livrão” da FPF tem as seguintes vantagens: trata de todas as divisões, inclusive de anos posteriores a 1947, e é mais atualizado. E duas desvantagens: não traz a relação de todas as partidas (só da campanha do campeão) e não tem o acabamento gráfico tão sensacional. Em relação aos “Almanaques”, como dissemos, traz menos informações sobre os clubes.
Em contrapartida, o “livrão” tem informações que não constam em nem uma dessas outras obras, p.ex:
a) Estatísticas gerais que resumem toda a sua história e lembram a “numeralha” da velha Placar.
b) A história, ano a ano, do campeonato paulista feminino, nos mesmos moldes em que apresentou a história do masculino. Com “numeralha” geral e informações sumárias dos clubes participantes, organizados por cidade.
c) Informações sumárias sobre outros campeonatos: Copa Paulista (e antecessoras), aspirantes, amador estadual, Copa São Paulo de juniores e outros das categorias de base. (Bem que podia trazer essas informações sumárias também sobre outras competições e troféus, como Taça Piratininga, Torneio Laudo Natel, Torneios Incentivo, campeão do interior etc., como José Ermírio de Moraes Filho fez de forma incipiente em seu livro “Seis anos de Federação Paulista de Futebol”. Afinal, o “livrão” se diz uma enciclopédia do “futebol” paulista, não exclusivamente de seu campeonato.)
Uma das maiores vantagens do “livrão”, contudo, é apresentar a homologação de uma série de títulos de campeão, conforme decisão da FPF. Eles são identificados por meio de asteriscos em outra importante característica herdada (e ampliada) de “Os esquecidos”: uma ampla planilha de campeões, organizada por ano (linhas) e divisão (colunas).
Quanto a esse aspecto, a FPF – não o livro – merece alguns elogios e algumas críticas.
1. Elogios:
1.1. A FPF está de parabéns pela transparência. Antes já abria seus arquivos (salvados do incêndio de 1995) à pesquisa. Até para anônimos como eu que, em 2018, visitei a FPF para pesquisar torneios menores dos anos 60 e 70. Outras federações não publicam nem sequer as listas de campeões em seus sites. E não permitem a consulta a seus arquivos. Se é que os têm. Organizados.
1.2. Ao contrário de outras federações, se debruça sobre os pedidos de reconhecimento de títulos e, sobretudo, decide.
2. Críticas:
2.1 Foram reconhecidos como títulos da primeira divisão os da FPF amadora (homônima da atual), de 1933 e 1934. As razões infelizmente não estão no “livrão”, mas em “Os esquecidos”, que defendia essa tese por comparação com cisão a ela contemporânea, ocorrida no futebol carioca. Ok, essa é uma perspectiva sincrônica. Mas pela diacrônica, note-se que, quando a LBD se fundiu à FPF amadora, apenas o campeão e o vice de 1934 integraram a 1ª divisão da LPF; o Albion, terceiro colocado, ficou na “intermediária” – algo somente explicável se admitirmos que ela não tinha o nível técnico de uma 1ª divisão. E, numa visão mais ampla, esses campeonatos de 1933 e 1934 foram, na verdade, os antecessores do campeonato amador do estado, disputado a partir de 1942. Por fim, essa “proto-FPF” foi reconhecida pela CBD, sim, mas não por critério técnico e sim político, porque a CBD vivia às turras com a Apea.
2.2. Se é para reconhecê-los, por que não também os da Segunda Liga Paulista de Foot-ball, União Sportiva do Estado de São Paulo, Liga Paulista de Sports Athleticos, Associação Paulista de Foot-ball, Federação Paulista de Sports e Federação Paulista de Esportes?
2.3. A FPF reconheceu como campeões da 2ª divisão de 1932: Albion (pela divisão da capital), Portuguesa santista (pela série santista da divisão do interior) e Guarani (pela série campineira da divisão do interior). Ocorre que o próprio livro informa que existiu uma final da divisão do interior, em que a Portuguesa santista venceu o Guarani por 1x0, em 15.01.1933. Ora, havendo um campeão da divisão do interior, não faz sentido reconhecer como de mesmo nível títulos das séries que a compõem. Mal comparando, seria como reconhecer que os campeões da Taça Guanabara também são campeões cariocas.
Esse tipo de problema poderia ser minimizado se o “livrão” apresentasse também as razões para o deferimento dos pedidos de homologação de títulos. Aliás, poderia mencionar também quais outros foram solicitados e por que não foram atendidos. P.ex., os campeonatos “Extra” de 1926 e 1938, cujo reconhecimento é solicitado pelo Palmeiras, em dossiê de Fernando Gallupo.
Aliás, mais alguns reparos a fazer sobre o “livrão”:
1. Quanto ao conteúdo:
1.1. O “livrão” trouxe consigo pelo menos duas possíveis inconsistências que já mereciam o cartão amarelo em “Os esquecidos”. A primeira delas é a lista de campeões da Associação Santista de Esportes Atléticos (ASEA), em que constam o CA Santista em 1920 e o SPR FC em 1935. Todavia, o conceituado pesquisador santista Julio Bovi Diogo (aliás, colaborador da obra – p. 553) informa, na RSSSF, que foram o CE América e o EC Bandeirantes, respectivamente. Enquanto o “livrão” só enumera os campeões, Julio apresenta a tabela de classificação de 1920 e os resultados de 1935, ou seja, sua informação tem mais credibilidade.
1.2. A segunda inconsistência herdada de “Os esquecidos” é quanto à série campineira do campeonato do interior de 1933. Segundo o “livrão”, a Ponte Preta foi campeã da Série Campineira da APEA e só depois houve a debandada de todos os times (exceto Guarani) para a primitiva FPF (amadora). Não é verdade. Como se vê nos jornais da época, a debandada ocorreu em setembro (Correio de S. Paulo, 22.09.1933), durante o campeonato da APEA, enquanto o título da Ponte pela FPF foi noticiado em dezembro (Correio Popular, 28.12.1933). Esse fato ter a insuspeita concordância de um pesquisador alvinegro (Sérgio Rossi, “História da Associação Atlética Ponte Preta”, v. 1, p. 339-41) e outro bugrino (Celso Franco de Oliveira Filho, “A rota das bandeiras”, p. 68-9), é bem significativo.
1.3. Além disso, o “livrão” contribuiu com uma inconsistência até então inédita, no que diz respeito aos campeonatos classistas. Como havia algumas informações conflitantes entre o texto e a tabela, conferi os dados com o site Campeões Paulistas, do criterioso pesquisador são-paulino Michael Serra. Em resumo, de 1954 a 1960, o “livrão” parece confundir os campeões da 2ª divisão da capital com os da ACEA e da LECI.
2. Quanto à forma:
2.1. A falta de títulos correntes, que facilitariam muito encontrar o ano, como num dicionário. (É mais fácil fazê-lo folheando do que toda vez consultar o sumário.)
2.2. A escala de cores adotada para identificar as divisões. Trata-se de um recurso muito inteligente e necessário para reconhecer qual é a real divisão de que se trata, considerando as diversas mudanças de nome das divisões. Já havia sido utilizado nos “Almanaques”, com sucesso. O problema, no “livrão”, é que a paleta de cores desse expediente é muito estreita. É difícil distinguir os tons de vermelho da 1ª e 2ª divisões, bem como os de laranja e amarelo da 3ª e 4ª divisões. Imagino que o problema seja ainda maior para daltônicos. Em tempos de valorização da acessibilidade, é algo a considerar para a próxima edição... a do sesquicentenário.
Mesmo assim, são firulas. Trata-se da obra que reúne o maior e mais atualizado conjunto de informações – oficiais! – sobre a história de todas as edições de todas as divisões do mais antigo campeonato estadual do Brasil. Um golaço do Kussarev, uma goleada da FPF.