Quando o “foot-ball” dava seus primeiros passos (e passes) no Brasil, ele provocou grandes polêmicas em todas as esferas da sociedade brasileira. Contudo, naquele tempo em que a alfabetização era muito mais restrita e o jornalismo mais elitista, toda e qualquer polêmica tinha a tendência a terminar nas penas dos grandes escritores. Foi justamente o que aconteceu com o futebol.
Assim como um Fla-Flu literário, a primeira rivalidade literária que encampou a discussão foi entre Coelho Netto e Lima Barreto. De um lado, o maranhense Henrique Maximiniano Coelho Netto (1864-1934), romancista da época (que depois, com a consagração do Modernismo, caiu no esquecimento do grande público), defendia com unhas e dentes o futebol. Do outro lado, o carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), célebre autor do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, detestava o futebol.
Nessa polêmica, Coelho Netto (foto ao lado) ficou mais com a ação e Lima Barreto com a palavra. Aquele assistia às partidas, virou sócio do Fluminense e levou toda a família. Um de seus filhos, João, o famoso Preguinho, atuou em nove (!) modalidades esportivas (futebol, basquete, natação, pólo aquático, remo, saltos ornamentais, atletismo, vôlei e hóquei sobre patins) e foi o autor do primeiro gol brasileiro em Copas do Mundo (na derrota de 2x1 para a Iugoslávia, em 1930). Coelho Netto mesmo ganhou fama por ter participado do que teria sido, segundo seu filho Paulo, a primeira invasão de campo na história do futebol carioca, um Fla-Flu em 22.10.1916.
Já Lima Barreto soltou o verbo nos periódicos em que escrevia. São várias as crônicas (eu contei 10), que vão de 1918 a 1922, em que espinafra sem dó nem piedade o esporte bretão. Em linhas gerais, considera-o uma grande inutilidade, uma perda de tempo, uma futilidade elitista e uma estupidez violenta. Vejam este trecho, de 03.06.1922: “O football é uma escola de violência e brutalidade e não merece nenhuma proteção dos poderes públicos, a menos que estes nos queiram ensinar o assassinato”. Chegou a criar uma “Liga Contra o Foot-ball”...
Como explicar que o futebol, uma novidade para a época, fosse defendido por um escritor de estilo acadêmico e pomposo e atacado por outro de estilo mais moderno? A aparente contradição tinha duas explicações. Em primeiro lugar, o debate sobre o futebol era apenas mais um parágrafo de uma vasta rixa pessoal entre os dois. Só para se ter uma idéia, Lima Barreto (foto) chegou a escrever, em 15.02.1918, que Coelho Netto era nada menos que “o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelectual”. Em segundo lugar, era uma questão social e racial. O futebol era, até onde podia, esporte de ricos – que, majoritariamente, eram brancos. Como a família Coelho Netto. Lima Barreto, porém, não era nem uma coisa, nem outra. E sempre denunciou ambas as discriminações, de que o futebol era então um forte símbolo.
O segundo derby literário foi disputado entre José Lins do Rego e Oswald de Andrade. O paraibano Zé Lins (1901-1957), consagrado autor do romance Menino de engenho, era flamenguista fanático. Escrevia pequenas crônicas sobre futebol, as melhores reunidas na coletânea Flamengo é puro amor. Já o paulista Oswald (1890-1954), que chegou a escrever um poema com menção ao futebol (na realidade, um capítulo de Memórias sentimentais de João Miramar), passou a atacá-lo na pessoa de Zé Lins.
Na realidade, foi uma dupla virada-de-casaca. Oswald (foto), que tinha elogiado o paraibano, depois passou a criticá-lo da pior forma possível. Era como se Lima Barreto passasse o bastão a Oswald e Coelho Netto a Zé Lins, tanto que, em 03.02.1952, Oswald comparou Zé Lins justamente a Coelho Netto. Aliás, numa coisa eles realmente podiam ser comparados: Zé Lins também protagonizou uma invasão de campo em São Januário. Mas é em “Carta a um torcida” (isso mesmo: naquela época, o torcedor era chamado de “o torcida”) que Oswald fala – mal – do futebol, comparando-o ao circo romano, feito para distrair as massas da tirania.
Além dessas polêmicas, outros escritores famosos se aventuraram a falar nos primeiros anos do futebol. Dos grandes, talvez Monteiro Lobato (1882-1948) tenha sido o primeiro. Em julho de 1905, portanto muito antes de ganhar fama com o Sítio do Pica-pau Amarelo, José Bento Monteiro Lobato publicou dois artigos em que defendeu o futebol como forma de exercício físico. Neles, o ilustre filho de Taubaté (SP) disse o seguinte: “um ditador que tomasse conta desta República e acabasse com as fábricas de bacharéis e normalistas, substituindo-os por severos teams de futebol, faria mais pelo Brasil que as dez gerações de Feijós, Zés Bonifácios e Cotegipes e demais estadistas que nos têm governado”. Nota-se que o alvo do jovem de 23 anos era, na realidade, o bacharelismo. Seu entusiasmo, porém, durou pouco. Após as primeiras caneladas, nunca mais quis saber de futebol.
Outro que parece ter mudado de opinião foi Rui Barbosa, o “Águia de Haia”. O baiano Rui Caetano Barbosa de Oliveira (1849-1923), em 1882, fez célebres pareceres em favor das práticas esportivas. Neles, disse que “se é certo que a ginástica, além de ser o regime fundamental para a reconstituição de um povo cuja vitalidade se depaupera, e desaparece de dia em dia a olhos vistos, é, ao mesmo tempo, um exercício eminentemente, insuprimivelmente da liberdade” (apud Manoel Tubino). Mas, como se diz, na prática a teoria é outra... Em julho de 1916, quando a seleção brasileira iria disputar o 1º Campeonato Sul-Americano, em Buenos Aires, o único navio disponível para a viagem era o Júpiter, fretado para levar uma delegação diplomática brasileira à Argentina. Lauro Muller, Chanceler brasileiro, foi avisar Rui Barbosa que a seleção brasileira iria de carona quando recebeu a seguinte resposta: “Pois saiba o senhor que eu, minha família e os meus auxiliares não viajamos com essa corja de malandros! Futebolista é sinônimo de vagabundo, e pode escolher imediatamente, Sr. Ministro, ou eles ou eu!” Resultado: a seleção teve de viajar de trem: cinco dias de viagem, chegaram exaustos na véspera do jogo de estréia. Bem, podia ser pior! Em 1901, quando Oscar Cox consultou dirigentes da Estrada de Ferro Central do Brasil para transporte gratuito ou com desconto de um selecionado carioca, ouviu que “a Estrada de Ferro não foi feita para passeios de malandros e desocupados”...
Merece destaque também o alagoano Graciliano Ramos (1892-1953). O notável autor de Vidas secas e São Bernardo publicou, em abril de 1921, uma crônica em que previa que o futebol era uma estrangeirice que não tinha a menor chance de prosperar no Brasil. Porque o brasileiro, segundo ele, é fisicamente “uma miséria”. Somos “moles, bambos, murchos, tristes”. Em tom irônico, defende que, em vez do futebol, deveriam ser promovidos o que ele chamava de “esportes regionais”: “o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas”. Principalmente: “A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência! Todos nós vivemos mais ou menos de atirar rasteira uns nos outros. Logo na aula primária habituamo-nos a apelar para as pernas quando nos falta a confiança no cérebro – e a rasteira nos salva. (...) E se algum de vocês tiver vocação para a política, então sim, é a certeza plena de vencer com o auxílio dela.” Como se vê, o futebol foi apenas o pretexto que Graciliano procurava para criticar outra coisa...
Página adicionada em 10/Janeiro/2010.
Fontes de pesquisas utilizadas pelo autor (Laércio Becker):