Todos conhecem Gilberto Freyre (1900-1987), o antropólogo e sociólogo brasileiro autor da obra-prima Casa Grande & Senzala, além de Sobrados & Mucambos, Ordem e Progresso, Nordeste etc.
O que não é muito divulgado é que o imortal pernambucano, torcedor do Sport Club do Recife, também escreveu sobre futebol.
Seu primeiro texto sobre o assunto foi o artigo “Foot-ball mulato”, publicado originalmente no Diário de Pernambuco, em 18.06.1938 e reproduzido em obras posteriores, como em seu volume de Sociologia, e nas coletâneas Gilberto Freyre e Seleta (nesta, sob o título “Futebol brasileiro e dança”). Nesse artigo, já percebia o surgimento de um jeito brasileiro de jogar, mais ligeiro, “dançado” (poucos anos depois, Mário de Andrade também compararia o futebol brasileiro a um bailado), espontâneo, improvisado, surpreendente e artístico, que contrastava com o estilo europeu, especialmente inglês, mais geométrico, padronizado, uniformizado. Isso lá em 1938! O que prova que Gilberto Freyre estava não só bastante antenado com o que acontecia num esporte que ainda estava em sua terceira Copa do Mundo, como tinha grande percepção das duas grandes escolas ou estilos de jogo.
De seus textos sobre futebol, o mais famoso é, sem dúvida, o segundo que publicou. Trata-se do prefácio que redigiu para O negro no futebol brasileiro, livro de Mário Filho (irmão de Nelson Rodrigues, que deu nome ao Maracanã) que virou um clássico da sociologia do futebol brasileiro – apesar das críticas recentes de Antonio Jorge Soares (sobre o assunto, ver A invenção do país do futebol. Rio de Janeiro: Mauad, 2001). Nesse célebre prefácio, Gilberto Freyre constata como o futebol acabou se tornando, no Brasil, uma verdadeira instituição, aceita pelo governo, pela Igreja, pela imprensa e pela opinião pública, que canaliza os impulsos irracionais do brasileiro. Sem o futebol, acreditava Gilberto Freyre, esses impulsos provavelmente buscariam canais mais violentos de expressão, brutalizando outras instituições que hoje são muito mais “dóceis”, como a capoeira, o samba e a malandragem.
O terceiro texto de Gilberto Freyre sobre o assunto é “A propósito do futebol brasileiro”, de 18.06.1955, integrante da coluna “Pessoas, coisas e animais” que publicava na revista O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand. Nele, chama a si o pioneirismo de dar importância sociológica ao estilo brasileiro de jogar. E sugere que o fato de dizermos que o futebol brasileiro é “o mais bonito do mundo” poderia ser uma espécie de compensação estética para os fracassos técnicos que a Seleção acumulava, até então, nos campeonatos mundiais.
O quarto texto saiu na edição seguinte de sua coluna, uma semana depois: “Ainda a propósito do futebol brasileiro”. Nele, destaca o caráter individualista do estilo brasileiro, pelas façanhas, iniciativas e improvisos individuais dos jogadores, que são comparados a heróis, como Leônidas da Silva. Diz, no entanto, que é preciso conciliar esse individualismo com disciplina, “sem a qual o esforço de um grupo se degrada, afinal, em histeria anárquica”.
O quinto texto é “Futebol desbrasileirado?”, publicado no Diário de Pernambuco de 30.06.1974. Nele, criticou o estilo da Seleção na primeira fase da Copa de 1974, como sendo muito calculado, ordenado, ou seja, muito inglês e pouco brasileiro. Pergunta, então: “Que acontece, caro Mestre Zagalo? Ainda é tempo para uma reafirmação de brasileiridade no seu setor”. No fim, acaba por parabenizar Zagalo pelo jogo contra a Alemanha Oriental, a seu ver devidamente “reabrasileirado”.
Em 1976, Gilberto Freyre voltou ao futebol muito brevemente, em nota à 2ª edição de seu livro Ingleses no Brasil.
Novamente compara o futebol brasileiro a uma “verdadeira dança afro-brasileira, com driblagens nunca imaginadas pelos seus inventores”. Apesar disso, o autor reafirma origem britânica desse esporte: “Não se pode separar o futebol (association) de sua origem britânica para o considerar invenção brasileira ou afro-brasileira. O que ele é, na sua atual e triunfante expressão brasileira, é um jogo anglo-afro-brasileiro. Transculturação num dos seus melhores exemplos.”
Por fim, publicou o artigo “A propósito de Pelé”, na Folha de S. Paulo de 03.09.1977. Nele, comparou Pelé aos escritores Machado de Assis e Euclides da Cunha, ao compositor Heitor Villa-Lobos, ao arquiteto Oscar Niemeyer ao bailarino russo Nijinski. O que une todos eles? Responde o autor: a genialidade.
Gilberto Freyre, com esses escritos, deu os primeiros passos da antropologia no campo do futebol brasileiro. Passos depois seguidos por Roberto Damatta e tantos outros, como demonstra Luiz Henrique de Toledo, em vasto levantamento bibliográfico publicado no no 52 da Revista Brasileira de Informação Bibliográfica, da Anpocs.
Página adicionada em 23/Novembro/2009.
Fontes de pesquisas utilizadas pelo autor (Laércio Becker):