Sem dúvida, a Segunda Guerra Mundial é a maior fonte contemporânea de relatos sobre heroísmo e coragem. Muitas são também, as histórias por vezes curiosas, não obstante, terem sido escritas com o sangue e a dor dos povos envolvidos no conflito. Ironia, patriotismo e futebol se misturam de maneira surpreendente, fazendo deste caso um dos mais interessantes. Trata-se das proezas de Bernhard Trautmann.
Bernhard Trautmann nasceu em Bremen, no ano de 1923. Desde sua juventude, ele foi seduzido – igual a outros milhões de jovens alemães – pelo discurso nacional socialista de Adolf Hitler, se engajando na Juventude Hitlerista. Quando a guerra teve início, Trautmann não titubeou em alistar-se na Luftwaffe para lutar pelo seu país, para defender o que acreditava ser uma causa justa. Ele foi então enviado para a recém invadida Polônia, onde desempenhou a função de operador de rádio.
Mais tarde, Trautmann, sendo paraquedista, foi transferido para a Frente Oriental e teve que lutar contra o Exército Vermelho. Ele conseguiu sobreviver a essa experiência, da qual retornou condecorado com a Cruz de Ferro por seus méritos no campo de batalha.
Trautmann também sobreviveu a um bombardeio aliado à cidade de Kleve, onde foi feito prisioneiro por dois soldados americanos, mas milagrosamente escapou da prisão. Pouco tempo depois, ele foi preso novamente, dessa vez por um esquadrão britânico, que o levou para um campo de prisioneiros na Bélgica.
Depois de passar algum tempo na prisão belga, Trautmann foi transferido para outro campo de prisioneiros em Malbury Hall, na Inglaterra. Nessa prisão, para aliviar o tédio, eram organizadas partidas de futebol entre os soldados britânicos e um grupo de prisioneiros. Trautmann, devido a ter participado em competições esportivas de alto nível, enquanto na Juventude Hitlerista, era o destaque nas peladas da prisão.
Quando a guerra terminou, Trautmann não quis ser deportado para a Alemanha, ele sabia que seu país estava em ruínas e decidiu começar uma nova vida em solo inglês. Para sobreviver, o alemão trabalhava no que encontrava, muitas vezes em granjas, outras em fábricas e, nas horas de folga, ele se dedicava à sua paixão: o futebol. Trautmann jogava por um clube amador chamado St. Helens Town, nas cercanias da cidade de Wigan. Apesar de defender um clube sem nenhuma importância, a estatura e a agilidade de Trautmann como goleiro atraíram a atenção dos grandes times ingleses. Ele assinou seu primeiro contrato com a Manchester City para a temporada 1949 – 1950, contudo não foi bem recebido pela imprensa, tampouco pelos torcedores, que desprezavam o passado nazista do novo reforço. Até mesmo entre os jogadores do clube, cujo capitão, Eric Westwood, era um veterano do desembarque na Normandia, a presença de um "kraut" na equipe não era bem vinda.
Não devemos nos esquecer que o exército alemão infligiu o maior ataque que a Inglaterra já sofrera em toda a sua história, por isso, não causa estranheza que os torcedores fossem aos treinos e aos jogos do Manchester carregando faixas que diziam: " Fora Alemão ". Apesar das dificuldades, Trautmann resolveu seguir em frente e mostrar toda a sua capacidade.
Com o tempo, as grandes atuações de Trautmann foram fazendo com que os fanáticos torcedores do Manchester City esquecessem o passado nazista do guarda metas. Eles já não o viam como o antigo inimigo, o arauto de um regime que quase destruiu a Inglaterra, mas sim como um grande goleiro, cujas defesas milagrosas garantiram várias vitórias para o seu amado clube. Somente os torcedores rivais ainda o insultavam das arquibancadas quando o time jogava fora de casa.
Foi justamente jogando como visitante que Trautmann começou a converter-se em um mito. Em janeiro de 1950, o Manchester City viajou para Londres para jogar contra o Fulham, era a primeira vez do goleiro alemão na capital dos ingleses, desde sua chegada a Grã-Bretanha. Sua equipe passava por uma fase difícil e os donos da casa eram os favoritos, na verdade, esperava-se que goleassem o Manchester. Foi então que surgiu a figura colossal de Trautmann, a fazer defesas impossíveis, apesar de todos os insultos que vinham das arquibancadas. Naquela tarde, ele foi o herói do Manchester City, que venceu por 1 a 0. No final da partida, os jogadores adversários bateram palmas para Trautmann, abismados pela atuação do goleiro alemão, pouco a pouco, o gesto foi se espalhando pelas arquibancadas do Craven Cotttage. Os xingamentos se transformaram em aplausos. Nascia um mito.
Dez anos depois de ter chegado ao City, Bert Trautmann viveu uma experiência que aumentou ainda mais a reverência dos torcedores do clube pelo seu nome. Tendo sido eleito o melhor jogador do campeonato inglês de 1956, Bert ganhou fama por sua atuação na final da Copa da Inglaterra do mesmo ano, disputada contra o Birmingham. Restando 17 minutos para o término da partida, Trautmann acabou sofrendo uma grave lesão, após mergulhar nos pés do jogador Peter Murphy. Apesar da gravidade da lesão, ele continuou no jogo, tendo sido importante para manter o placar em 3 a 1. Seu pescoço estava visivelmente torto e, três dias depois, um raio-x mostrou que havia cinco vértebras deslocadas, sendo que uma delas estava partida em dois. A gravíssima lesão o afastou dos gramados por um ano - acima foto do lance da partida em que sofreu a lesão.
Bert Trautmann jogou 545 partidas durante 15 temporadas na Football League. Em 2005 ele entrou para o The English Football Hall of Fame, sendo um dos poucos jogadores não britânicos a receber essa honraria. O goleiro alemão faleceu em 13 de julho de 2013, na Espanha. Ele tinha 89 anos.