
As amarras se soltaram e a barca começou a deslizar suavemente pelo mar. A brisa acariciava os cabelos de Zizinho, enquanto que o seu rosto duro fitava o horizonte. Quantas vezes ele havia feito o trajeto até sua casa em Niterói? A barca era sua amiga e proporcionava momentos de conforto, alívio para as armadilhas da vida e do seu ofício de jogador de futebol. Em que pese o fato de ser um ídolo, tantos dissabores ele vivera. E os bancos de madeira da barca eram testemunhas da sua tristeza, das suas mágoas.
Mas nem sempre foi assim. Nos seus dourados anos vestindo a camisa do Flamengo, Zizinho fora tremendamente feliz. Basta lembrar o famoso tri campeonato carioca: 1942, 43 e 44, época em que o seu talento era a força locomotora de um time inesquecível, com a classe estarrecedora de um Domingos na retaguarda. Ou com a fúria goleadora de um Perácio, o canhão de Nova Lima, chamado também de “pé de chumbo” pelo cronista Luiz Mendes. E como olvidar do bom companheiro gaúcho Pirilo, notável estilista na arte de vazar as redes inimigas? Não. Definitivamente a vida não era um rosário de lamentações para Zizinho.
As emoções confundiam-se no peito do craque à medida que a barca ganhava águas profundas. A verdade era que agora ele defendia as cores do Bangu. Um clube que ele veio a amar e no qual fez novas amizades. Sem embargo, a sua saída do Flamengo era uma ferida aberta que o vento salgado do mar não deixava curar. Negociado à revelia com o grêmio suburbano pelo presidente Dario de Melo Pinto, Zizinho considerou-se traído pelo clube que defendera com tanta lealdade. As viagens na barca começaram a ser amargas e melancólicas. A ingratidão era uma coisa difícil de esquecer.
E então veio a derrota para o Uruguai. Segundo muitos, uma tragédia apenas comparável ao suicídio de Getúlio Vargas. E Zizinho fora um de seus protagonistas, não conseguindo vencer a garra charrua dos vários Obdulios, Gambettas e Tejeras. Atônito, após o tríplice apito foi consolado pelo arqueiro rival Roque Máspoli, iniciando ali uma comovente amizade que perduraria através do tempo. Em várias oportunidades os elencos desse estupendo choque voltariam a encontrar-se, quer fosse no Rio de Janeiro ou em Montevideo. Mas isso seria mais tarde. Naquele dia no Maracanã, a Jules Rimet repousaria nas mãos de “albañil” de Obdulio Varela, enquanto Zizinho partiria para o seu mais lúgubre retorno ao lar. Fatalidade? Muitos anos depois ele reconheceria em uma entrevista: “Os uruguaios eram melhores”. Novos desafios haveriam de amenizar tanto dissabor.

Em 1951, o Bangu foi comendo pelas beiradas e chegou à decisão do título carioca contra o Fluminense de Telê, Didi, Carlyle e Orlando “Pingo de Ouro”. Foram duas partidas em que aconteceu de tudo, inclusive um lance em que Didi acabou quebrando a perna do lateral Mendonça. Bem vigiado pelo beque Pinheiro, Zizinho não pôde dar o troféu ao clube que tão bem lhe recebera. Em Moça Bonita, ele sentiria as dificuldades de atuar por uma equipe de menor expressão. As arbitragens de ontem, assim como as de hoje, costumavam ajudar sem escrúpulos os chamados clubes “grandes”. Ficou na história o episódio em que Eunápio de Queiroz expulsou Zizinho no intervalo de uma partida contra o Vasco, após o jogador ter feito um trocadilho com o nome do juiz e a palavra “larápio”. O Bangu era prejudicado e sua estrela maior sentia-se perseguida.
A barca conduzia lentamente os passageiros, o balanço das ondas causando enjôo em algum turista despreparado. Não em Zizinho. Veterano de tantas travessias, ele sentia que a hora de pendurar as chuteiras se aproximava. Sim, mas ainda haveria tempo para mais um título, dessa vez em terras bandeirantes, com a casaca tricolor do São Paulo. Novamente atuando por um time forte, o craque foi uma peça fundamental no esquema do técnico húngaro Bela Guttman. No ano seguinte, o Brasil seria campeão do mundo na Suécia, com Pelé maravilhando as audiências européias. Poucos sabiam que aquele moleque endiabrado sonhava em jogar como um dia fizera Zizinho. Pelé tornou-se o rei. Zizinho era o ídolo do rei. Na seleção canarinho ele nunca teve muita sorte, sobretudo após o estigma de 1950. E, para piorar, houve o problema no sul-americano de Lima, em 1953, no qual ele acabou rotulado de mercenário pelo escritor José Lins do Rego, chefe da delegação brasileira na ocasião. Esse episódio, inclusive, motivou Zizinho a escrever o livro “Verdades e Mentiras no Futebol”, em 2001.
Até que o dia da última viagem chegou. As brumas escureceram a visão de Zizinho, e ele foi vendo a sua querida Niterói sumindo aos poucos, ficando cada vez menor, enquanto a barca ia subindo para o céu, até desaparecer completamente no infinito.